quinta-feira, 21 de outubro de 2010
Bocadinhos de Histórias I
«Lourença tinha três irmãos. Todos aprendiam a fazer habilidades como cãezinhos, e tocavam guitarra ou dançavam em pontas de pés. Ela não. Era até um bocado infeliz para aprender, e admirava-se de que lhe quisessem ensinar tantas coisas aborrecidas e que ela tinha de esquecer o mais depressa possível. O que mais gostava era comer maçãs e deitar-se para dormir. Mas não dormia. Fechava os olhos e acontecia-lhe então uma aventura bonita, e conhecia gente maravilhosa. Eram as pessoas que ela via no cinema ou que ela já tinha encontrado em qualquer parte, mas que não sabia quem eram. Não gostava de ninguém que se pusesse entre ela e a imaginação, como um muro, e a não deixasse ver as coisas de maneira diferente. Não gostava que lhe tocassem e, sobretudo, que a gente grande pesasse com a grande mão em cima da sua cabeça. Apetecia-lhe morder-lhes e fugir depressa. Mas não fazia nada disso. Ficava quieta e olhava para a frente dela, cheia de seriedade. Isso tinha o efeito de causar estranheza, e diziam sempre que ela era uma menina obediente e sossegada. Mas retiravam a mão. Tinham-lhe posto o nome de «Dentes de Rato», porque os dentes dela eram pequenos e finos, e pela mania que ela tinha de morder a fruta que estava na fruteira e deixar lá os dentes marcados.» (in Dentes de Rato, de Agustina Bessa-Luís)