Era uma vez um boneco muito feio. Tinha nascido numa folha de papel, de lápis distraído de um senhor, que estava a pensar noutras coisas.
Quando o senhor acabou de pensar no que estava a pensar, amarrotou o papel e atirou-o para um canto. Era um senhor muito desarrumado, sem nenhumas maneiras e talvez sem cesto dos papéis em casa...
Passado tempo, muito tempo, uma pá e uma vassoura pegaram no papel amachucado e atiraram-no para dentro dum caixote. Ainda mais feio e sujo ficou o boneco. Que pouca sorte a dele!
Quem manejara a pá e a vassoura pôs o caixote à porta. Veio então o vento, que andava a limpar tudo. O papel, onde ia o boneco, voou, levado pelo rodopio. Voou, voou e foi ter a uma casa. Estavam as janelas da casa abertas de par em par, à espera sabe-se lá de quê. Foi fácil ao papel entrar, sem pedir licença. Entrou, rebolou, bolinha leve pelo soalho, e foi ter a um quarto.
Era uma casa desabitada, vazia de gente e de móveis. Que préstimo teria ali aquele boneco feio? O quarto escureceu. Fez-se noite no quarto e na rua. Num grande silêncio, tudo (que era bem pouco...) se deixou levar por um longo sono, de sonhos sem fim. Nem se deram aos seus estalidos do costume as tábuas do soalho.
Foi no meio do silêncio que o boneco desta história resolveu, ainda a medo, sair da folha de papel, que lhe servira de leito. Pôs um pé fora, depois outro e saltou para o chão. Uf!
Numa espreguiçadela, endireitou os bracinhos de linha e, dando uns passos incertos, habituou as pernas a andar. Que bem se sentia.
E foi andando, à maneira de quem vai visitar um museu ou um palácio muito antigo. Ou à maneira de quem se passeia por um castelo encantado...
De mãos atrás das costas, medindo os passos que dava, mirando o que havia a mirar, o boneco feio atravessou quartos, explorou salas, desceu escadas, subiu escadas e percorreu corredores. O silêncio à sua volta não lhe metia medo. E de que havia ele de ter medo, se mal ou quase nada conhecia do mundo?
Ia ele por um corredor, nos seus passinhos leves e tranquilos, quando viu aparecer à sua frente uma fieira de bonequinhos pequeninos, talvez da mesma raça, também malfeitões e de bracinhos de linha feitos a lápis. Vinham a dançar, mãos nas mãos, e a dançar ficaram à sua frente. Depois, a dança alterou-se e eles, continuando de mãos dadas, fizeram uma grande roda à roda do bonequinho feio. Nele não houve sinal de espanto nem de susto. Estava preso no meio da roda e olhava para os bonecos que rodopiavam à sua volta, como se estivesse a medir parecenças. Sentia-se, afinal, entre amigos.
E tinha razão.
- Príncipe e senhor, há quanto tempo o esperávamos - disseram os bonequinhos, em coro, interrompendo a dança e fazendo uma vénia de todo o tamanho.
- Mas eu não sou nenhum príncipe - explicou-se o boneco feio. - Sou um boneco feio como vocês, desenhado numa folha de papel por um senhor distraído.
- Schiu! - pediram os bonequinhos. - Nós sabemos, ou melhor, calculamos. Também nós fomos feitos por um menino, num caderno de desenho. O menino cresceu, deixou esta casa e esqueceu-se de um monte de cadernos e de livros numa despensa. Como vês, somos parecidos.
- Então porque me chamam príncipe?
Os bonecos desenhados por um qualquer menino aproximaram-se ainda mais do boneco feito por um senhor distraído e, todos de cabeças juntas, como um enorme cacho de oitos e de zeros misturados, segredaram-lhe o que nós, também em segredo, passamos a contar.
Naquela casa abandonada, vivia uma grande tristeza. Dava-se o caso que, entre os cadernos e livros esquecidos, havia um, cheio de lindas gravuras coloridas, que contava a história de uma princesa, a princesa Jasmínia, conhecem? Tudo estaria bem se, por qualquer acaso ou má sorte, ao livro não faltasse a última página, precisamente aquela em que iria aparecer, mesmo a propósito, o príncipe que salvaria a princesa Jasmínia do encanto da fada má. Depois? Ora, depois, era a boda do casamento, a luzida festa e muitos e muitos anos de felicidade.
Por palavras, o príncipe já entrara na história e salvara a princesa. Sucedia, porém, que na última página é que estava a gravura da princesa e do príncipe de braço dado, atravessando alas de povo, que os aclamava. Ora a última página, alguém a arrancara, talvez uma fada má, quem sabe? E a história quase a acabar, a princesa quase a casar, o velho rei quase a abraçar a filha querida, o povo quase a aclamar os noivos reais, o cortejo quase a sair do palácio, as trombetas quase a soarem, os tambores quase a rufarem... Mas nada disto sucedia, porque faltava um folha, porque faltava um príncipe em carne e osso, isto é, um desenho, para casar com a princesa. Estava, há que anos, inconsolável a princesa Jasmínia, à beira da página que lhe iria trazer o príncipe dos seus encantos.
- Porque é que um de vocês se não ofereceu para príncipe? - perguntou o boneco feio.
- A nós já ela nos conhece, de há muito. Estivemos na mesma prateleira, amarelecemos juntos... - explicaram os bonequinhos. - Anda daí! Ela é linda, desenhada com muita arte, pintada com lindas cores. Está debruçada da varanda com uma rosa na mão e espera por ti. Vem connosco, anda.
E foi assim que o boneco feio casou com a princesa Jasmínia. Ai o têm, na margem da página, a sorrir para ela, enquanto ela, da varanda, sorri para ele.
António Torrado